Na vastidão verde do Acre, onde o tempo dança ao compasso da floresta, mãos calejadas percorrem caminhos antigos, guiadas por memória e resistência. Entre seringueiras que sangram esperança, brota um dos insumos mais preciosos que cruzam fronteiras: a borracha amazônica.
Impulsionada por políticas públicas, pela atuação da Cooperativa dos Produtores de Agricultura Familiar e Economia Solidária de Nova Cintra (Coopercintra) e por incentivos do setor privado, a matéria-prima extraída nas estradas de borracha da zona rural de Rodrigues Alves calça o mundo com dignidade e resiliência.
Uma das principais matérias-primas utilizadas pela marca francesa Veja é justamente essa borracha. As solas dos tênis levam de 20 a 40% de borracha originária da floresta, coletada por comunidades tradicionais que mantêm modos de vida sustentáveis. O valor pago pelo quilo do CVP (borracha semiprocessada) é 3,5 vezes superior ao valor de mercado, com bônus de qualidade e de Serviços Socioambientais (PSES), o quilo chega a R$ 15. Além disso, como parte da certificação Fair for Life, cooperativas recebem um bônus adicional de R$ 0,60 por quilo para investir em projetos comunitários.
Com sede em Rodrigues Alves, a Coopercintra coordena essa engrenagem de saberes com 18 famílias que atuam na extração de látex nos municípios de Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul. Nessa rede já bem consolidada, que inclui ao menos 26 cooperativas, o produto é coletado nas comunidades, transportado pela Coopercintra à Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Cooperacre), e de lá segue para a empresa.
“Hoje a gente trabalha com 18 famílias de seringueiros em dois municípios, Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul, em seis comunidades em que o produtor coleta nas suas áreas, traz para a cooperativa, a gente pesa, faz o pagamento e depois, quando a gente termina o período de safra, a gente transporta para Cooperacre, que encaminha para o destino final, ou seja, para que a Veja faça a produção dos tênis”, explica Queline Souza, diretora executiva da Coopercintra.
Em parceria com a Fundação de Tecnologia do Estado do Acre (Funtac), a Coopercintra também realiza capacitações e monitoramento da qualidade da borracha, extraída em áreas remotas por trabalhadores que conhecem o tempo e os sinais da floresta como poucos.
Entre árvores e trilhas, o seringueiro Pedro Rodrigues de Souza, de 69 anos, desenha caminhos com sabedoria herdada. Aprendeu com o pai ainda menino e hoje, prestes a completar 70, percorre com familiaridade as estradas que levam até às suas 60 seringueiras.
Seus passos são rápidos e certeiros, como se a mata falasse em silêncio com ele e vive em harmonia com o território que alimenta seu sustento e molda sua história.
Natural de Marechal Thaumaturgo, criou cinco filhos com os frutos que a floresta lhe ofereceu com generosidade. A extração ocorre durante o chamado verão amazônico, quando a seiva corre mais livre. Souza é um dos beneficiados pela compra da empresa na comunidade, um gesto que, para ele, revela o potencial transformador do extrativismo acreano.
“Aprendi a cortar seringa com meu pai. Na época eu era o filho mais novo e para onde ele ia, eu o acompanhava. Quando ele faleceu, fiquei sozinho e dei uma parada por alguns anos e voltei de novo em 2020 e hoje, mesmo aposentado, minha renda maior é da borracha”, conta.
Souza acredita no equilíbrio entre exploração sustentável e preservação como fórmula vital para que a floresta continue sendo fonte de vida e dignidade.
“No meu ponto de vista é importante porque a pessoas conseguem tirar coisas da florestas sem precisar derrubar, queimar e prova que a mata também pode ser uma renda e dá pra viver assim. Foi assim que consegui criar meus cinco filhos”, diz agradecido.
Para atender às exigências da Veja, os extrativistas seguem critérios específicos de coleta, garantindo qualidade e rastreabilidade. É nesse momento que a atuação da Funtac se faz presente, oferecendo cursos e acompanhando os processos para que a borracha chegue ao mercado com excelência.
“Como aquela comunidade trabalha com o látex nativo para a venda dessa empresa, o produto não estava com a qualidade muito aceitável e eles procuraram a Funtac dizendo que queriam melhorar essa qualidade. Então, acertamos cursos de como coletar essa matéria-prima mais limpa, resultando em um produto mais limpo e de maior valor agregado”, explica Suelem Farias, diretora técnica da Funtac.
E para reforçar ainda mais essa cadeia sustentável, no fim de junho o governo do Acre protagonizou um feito histórico: o pagamento da subvenção do murmuru diretamente na conta dos extrativistas, algo aguardado há quase três décadas.
A nova metodologia, respaldada pela Lei Estadual nº 1.277/1999 e oficializada pelo Decreto nº 1.564/2024, foi implementada por determinação do governador Gladson Camelí, por meio da Secretaria de Estado de Agricultura (Seagri).
“Essa decisão me deixou muito feliz. Criamos a divisão do subsídio para atender exclusivamente os extrativistas assim que assumi a secretaria, porque antes ela era fundida a outras áreas”, explica o secretário de Agricultura, José Luis Tchê.
Antes, o pagamento enfrentava atrasos devido a erros cadastrais. Agora, a desburocratização e parceria com o Banco do Brasil garantiram agilidade e segurança.
“Por solicitação do governador, decidimos resolver de vez a vida dos nossos extrativistas. Fizemos parceria com o Banco do Brasil e já pagamos mais de 70 extrativistas diretamente na conta. O projeto-piloto funcionou e vamos seguir nesse formato”, garante Tchê.
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